sexta-feira, novembro 05, 2004

book on progress...capítulo 3

Veio a noite e com ela a percepção do cansaço. E com este o sono, que tentámos enganar indo para o corredor conversar, com as luzes apagadas, ora com o nariz colado à janela, ora com toda a cabeça enfiada do lado de fora. Ás tantas a escuridão ocupou a totalidade das paisagens apenas interrompida por uma ou outra luz distante. Quando cansado de estar no corredor, voltava para a nossa cabine, sentava-me e olhava na direcção da janela. o vidro, iluminado por dentro devolvia-me o reflexo que eu olhava sem ver já que a mente viajava à frente e ia já por terras francesas onde iríamos começar a caminhar.
Antes de abandonarmos o país, na estação de Vilar Formoso fomos despedir-nos da Sandrine e cumprimentar os pais que estoicamente aguentaram o atraso do combóio. Nem quero imaginar o que terão pensado quando viram quatro marmanjos sair da carruagem com a sua filha, distribuindo beijos de despedida...
Por essa altura já era bom que pensássemos em dormir e descansar mas depressa percebemos que nãop ia ser tarefa fácil. Aqueles bancos da segunda classe provaram ser do mais desconfortável que há, incómodos para as costas, sem sítio para poisar a cabeça e sem espaço para esticar as pernas. depressa compreendemos que foi péssima ideia termos preterido os beliches para poupar meia dúzia de euros mas se outra alternativa no momento fomos forçados a tentar cochilar buscando a melhor posição: pernas atiradas para o banco em frente e cabeça poisada no ombro do vizinho.
Acordei estávamos na estação de Burgos. Estremunhado pus a cabeça de fora da janela esperançado de pôr os olhos na catedral ou ao menos nas suas torres. como único monumento que conhecia da cidade, esparava vê-la e admirá-la como se isso fosse um prémio por ter acordado logo ali, especificamente ali. Contudo, nada vi para além de muros delimitando a linha e traseiras de prédios escuros e feios. Como um mistério de pedra, a igreja matriz da cidade permaneceu escondida. "Vê-la-ei no caminho de volta", pensei, "o caminho há-de lá passar...".
A partir daí não houve mais contratempos, ao menos para nós porque para uma brasileira que ia na cabine ao lado a coisa não correu tão bem. A história conta-se em poucas palavras: estávamos a chegar a Donostia-San Sebastian quando a rapariga nos interpela, falando em castelhano para questionar quanto falatava para Vitória. Ora Vitória tinha ficado para trás há uma boa hora! Tentámos dizer-lhe que éramos portugueses e que não precisava falar em castelhano e depois demos a má notícia. ela olhou para nós sem querer acreditar que tinha deixado passar o destino e continua a falar na língua de nuestros hermanos, como se fôssemos espanhóis. "mas nós somos portugueses!" Por que carga de água tem ela de insistir com o castelhano? Será que não entende? Concluimos que não entendia mesmo! O choque deve ter batido com força e desorientou a pobre brasileira. Naturalmente lamentámos o seu azar de ir a dormir quando passámos a Vitória mas nada mais podíamos fazer.
Embalados pelo pisar ritmado da composição percorremos a pouca distância que nos separava de Hendaye. Aí tivemos de colocar, pela primeira vez, as mochilas às costas, experimentando um pouco daquilo que a partir daí seria a nossa rotina diária.
Estava vencida parte da tarefa, a parte que nos levou até ao ponto mais afastado que estaríamos de casa. A outra parte era ir dali até ao ponto de partida da nossa rota, Saint-Jean-Pied-de-Port. Entre o macarrónico francês do Rui com a senhora da bilheteira ea leitura dos mapas de horários, descobrimos os passos a dar: nada mais, nada menos que panhar novo combóio, desta feita com destino a Saint Jean mas com escala em Bayonne.
Novos bilhetes na mão, havia que esperar um par de horas até à hora da partida, pelo que decidimos procurar algum lugar simpático onde aguardar. Enquanto eles se decidiam sobre que direcção tomar, entrei na tabacaria da gare para espreitar revistas e postais e para não variar acabei por comprar alguns.
Há muito tempo que os coleccuiono e aproveito quase todas as oportunidades para aumentar um pouco mais o acervo. não fosse por achar que às vezes são exageradamente caros e poderia já ser dono de uns lagos milhares. Assim, não passo dos 3500...
O que me move? não sei bem... acho que é porque vejo nesses objectos a possibilidade de guardar memórias para a elas regressar sempre que me fazem falata. daí que sejam géneros tão diversos: postais de cidades, de monumentos, de paisagens, de museus... são mais do que ilusttram, são sitios que visitei, pessoas com quem estive, cheiros, cores, sabeores, sensações. Eastá para além da descrição por palavras, olho para aquelas fotografias impressa em cartão grosso e vêm-me imediatamente à cabeça uma catadupa de imagens, como um filme que se desenrola à minha frente e onde sou simultaneamente actor, realizador e espectador.
saímos da gare e virámos è esquerda seguindo uma placa que indicava praias. a ideia era irmos espreguiçar numa quaklquer esplanada junto ao mar até ser hora de embarcar. Ainda andámos alguns metros mas como não vislumbrávamos o oceano pedimos indiocações a um transeunte que nos aconselhou a desistir da ideia. Do sitío onde estávamos, distávamos três quilómetros da praia, ou seja, não valia a pena darmo-nos ao trabalho de ir até lá para regressarmos logo em seguida. A opção foi ficar nas redondezas da ferrovia onde, para mal dos nossos pecados, deparámos com alguns dos mais brilhantes exemplos da proverbial hospitalidade francesa.
Primeiro sentámo-nos na esplanada de um café-restaurante escolhendo a mesa mais à sombra. Esta estava preparada com pratinhos e talherzinhos e copinhos o que, naturalmente, não nos cahteou minimamente. O importante era escapar aos rigores do sol alto e para beber um copo não estorva que a mesa esteja posta para almoçar... Quem assim não pareceu pensar foi o empregado, que além de levar uma eterbnidade a dar conta da nossa presença, fazia questão que nos mudássemos visto que ali, naquela mesa em particular, ou se almoçava ou não se fazia mais nada. Naturalmente com a sua sugestão não fez mais do que perder quatro clientes, nada dispostos a ir apanhar com a cabeça ao sol só porque o senhor se coibia de mudar a loiça para outro lado.
Já que nos tínhamos de mudar fizemo-lo para o café mais concorrente que encontrámos, exactamente do outro lado da rua. Não ganhámos grande coisa com a mudança já que bastou tentar comprar umas garrafas de água fresca para descobrirmos que este empregado que nos atendia era tão limitado e irascível quanto o primeiro. No início o problema foi fazer-lhe entender o que desejávamos, visto que o nosso francês não é fantástico e os gauleses parecem pensar que a sua língua é dominada pelos restantes hóspedes do planeta. Depois lá nos deu umas garrafitas pequenas que íamos a ceitar quando descobrimos que também vendia maiores. Compensava mais escolher as grandes mas quem nos diz que ele estava disposto a trocar? Ainda o fez a um de nós mas lá deve ter compreendido que ia perder dinheiro e quando chegou à minha vez disse que não podia trocar. Azar o dele que ainda não estava paga. Assim, nem grande nem pequena, não vendeu nenhuma e deu u triste espectáculo de como ser comerciante.
A tão anunciada escala em bayonne, escala tão prolongada que deu tempo para irmos tomar um café nas redondezas do apeadeiro foi logo ali ao dobrar da esquina. Em quinze minutos pusemo-nos lá, bem menos do que o tempo de espera da partida para Saint-Jean.
No café foi curioso encontrar um cachecol da selecção portuguesa por cima do balcão mas não quis interrogar a senhora sobre a sua origem. Ainda me respondia torto por quere saber se era de Portugal e de onde e eu não estava para me sujeitar a isso. Bastou-me ver que o símbolo estava ali, a mil e tal quilómetros da pátria, evocando o vermelho e verde nacional.
Mais uma vez olhámos para os mapas discutindo sobre o desafio mais próximo: a escalada dos Pirinéus. só o nome impóe respeito, ainda mais quando está bem presente o facto de ser a montanha mais alta a ultrapassar na nossa rota. Ainda mais quando essa montanha se interpõe à nossa frente logo no primeiro dia, quando estámos mais verdes e menos preparados.
De volta ao apeadeiro reparo na casa de banho dos homens: um urinor em pleno cais apenas resguardado por um tapume de mármore. até estava meio "apertado" mas a vergonha de ficar ali exposto fez-me abandonar a ideia. aguentaria mais um pouco até encontrar um W.C. mais convencional.
No cais número dois, de onde ia sair a nossa boleia, um grupo de italianos, entre jovens e menos jovens tomava diligências para averiguar se o combóio que ali descansava era o mesmo destinado a Saint-Jea-Pied-de-Port. Liderados por uma enérgica avozinha de olhos azuis lá se convenceram que era mesmo aquele e como descobriram que íamos todos para as mesmas bandas, logo quiseram saber de onde vínhamos e se era a primeira vez.
O percurso até lá era belíssimo. A linha bordejou praticamente sempre um rio muito bonito, ora deslizando calmamente em direcção ao mar, ora saltitanto sobre pedras produzindo rápidos e ameaços de cascatas. À medida que nos afastávamos do litoral cresciam os montes em volta e mudava a vegetação. nas zonas mais baixas dominavam os prados e os terrenos cultivados ao passo que nos topos, ou a meia encosta dos Pirinéus Atlânticos surgiam luxuriantes florestas de árvores variadas cujas espécies não sei nomear. O resultado é uma mescla de verdes diferentes que o sol de fim de Julho tornava mais brilhante e penetrante.
A chegada a Saint-Jean-Pied-de-Port provocou-me um certo formigueiro e frio no estômago. Estava ali, tinha levado a intenção até um estádio mais efectivo. "Um dia vou..." foi substituído por um "estou aqui!" e podia agradecer áqueles companheiros que tinha a meu lado. Eles conseguiram tornar a proposta viável demais para ser recusada, conseguiram torná-la aliciante demais para ser deixada de parte.
Mas se aqueles três tinham tido o seu papel como instigadores, como esquecer o apoio e o incentivo de alguém que ficara em Lisboa a torcer por mim? Se não fosse a Sónia a forçar-me a vir, talvez a oportunidade se gorasse por achar que haveriam outras vezes... Foi ela quem selou o destino quando me deu o seu aval e me desejou um bom caminho.
Neste turbilhão de pensamentos atirei a mochila para trás das costas e segui o pessoal. Creio que não minto quando digo que uns noventa e cinco por cento daqueles passageiros se iriam por em marcha, rumo a Santiago, no dia seguinte, como nós.
A primeira missão foi arranjar a credencial de peregrino, uma espécie de passaporte e salvo-conduto que identifica quem se dirige a santiago e dá acesso aos albergues do caminho. Teríamos de procurar uma Associação de Amigos do Caminho de Santiago onde nos dariam o dito documento e nos indicariam onde doirmir.
Franqueámos as portas da cidadela histórica para entrarmos num mundo parado no tempo. As ruas preservadas evocavam a idade média mas sem a porcaria a atapetar as pedras e os animais a partilhar o espaço com as pessoas. As casas estavam mais arranjadas do que alguma vez estiveram na época medieval e se a cidadela foi durante muitro tempo necessária à defesa dos cidadãos fechando-se às ameaças de fora, agora convida todos a entrar mantendo as portas abertas.

Quinta do Véu Branco

Costuma dizer-se à boca cheia que Sintra encerra a magia do sobrenatural, que é terra habitada por fantasmas e espíritos, alguns bons, outros nem tanto, que habitam os solares, os palácios e casas construídas pelas encostas.
Cada propriedade tem os seus próprios mitos, as suas próprias histórias que vão passando de boca em boca pela voz dos seus donos ou das pessoas que lá trabalham. Faz parte da sua mística e atracção a existência destas lendas, quantas vezes corroboradas por factos insólitos que sucedem inexplicavelmente à vista de alguma gente. Por vezes há uns senhores cientistas ou pessoas menos crédulas que arranjam explicações perfeitamente racionais e científicas mas não chegam para afastar a crença de que há para aqueles lados uma força e energia diferentes.
Óscar, desde sempre se sentiu fascinado e atraído por este folclore, alimentando a secreta ambição de um dia vir a ser ele a avistar uma alma penada ou a dar de caras com um fantasma. Sempre que podia, passava temporadas na casa de campo de um amigo de infância, situada bem no sopé desse monte que chamaram da Lua, casa grande omnipresentemente vigiada pelos cumes sintrenses.
A janela do quarto que ocupava na velha mansão abraçava o verde da serra e dela se podiam ver alguns dos velhos palácios que lhe dão fama e lhe granjearam o reconhecimento da Unesco. Não se cansava de ficar sentado numa espreguiçadeira, junto à piscina e de onde podia abarcar a totalidade do cenário.
O seu amigo possuía diversas propriedades por esse país fora e raramente se dignava a aparecer na Quinta do Véu Branco. Preferia o bulício urbano à calmaria da montanha, a proximidade das diversões da capital ao silêncio das noites de Sintra. Só muito ocasionalmente abandonava a sua vivenda na Lapa para se passear nas restantes propriedades e na maior parte dessas ocasiões lograva rumar para sul, para Vilamoura e outros Algarves. Óscar tinha dessa forma luz verde para ocupar a Quinta do Véu Branco durante o tempo que quisesse. Era um acordo de que beneficiavam os dois – Óscar tinha o seu refúgio predilecto à disposição e Fernando dormia descansado sabendo que o seu recanto bucólico estava em maior segurança de vândalos e ladrões.
Quinta do Véu Branco… a origem do nome perdia-se na imensidão dos tempos, sem que houvesse quem soubesse explicar tão estranho baptismo. Fernando ouvia os seus avós comentarem qualquer coisa sobre uma história de mouras encantadas que outrora morariam por ali mas nunca aprofundou a questão. Outras teses apontavam para uma donzela que na medieval era se tinha enamorado por um pagem e que se tinha suicidado quando este morreu na guerra para defender o seu amo. Apesar de todas as especulações o nome continuava um. Um painel de azulejos aposto como decoração numa fonte aninhada num cantinho obscuro da Quinta testemunhava a antiguidade do nome: datado de 1789 representava o edifício original e um estranho véu esvoaçando à altura da varanda principal da casa. Em baixo, uma inscrição arcaica declarava serem aqueles os domínios do Véu Branco. Era um mistério e apesar da propriedade ser pertença da família há várias gerações aparentemente não suscitava curiosidade suficiente para suscitar uma investigação mais aprofundada.
Meados de Agosto e Óscar lia um livro junto à piscina num final de tarde quente. O ambiente abafado e o silêncio reinante, aliados a um substancial petisco momentos antes, tiveram como consequência o cair num sono profundo.
É cerca de meia noite quando, estremunhado e alarmado pelo bater de asas de uma coruja, Óscar abre os olhos e pode admirar o espectáculo que a ténue luz da Lua proporciona naquele pedaço do jardim onde a piscina se aninha. A água adquire reflexos dourados, como se um manto de discreta claridade descesse sobre a noite, amenizando a escuridão. De repente nota num objecto brilhante no fundo da piscina, um objecto que o atrai e lhe desperta a curiosidade. Continua calor, um estranho calor que a ausência de vento ou brisa faz parecer abrasador. Estimulado pela sua curiosidade e sem medo de se resfriar atira-se às águas produzindo uma enorme onda. Mergulha e por lá fica alguns minutos, dois ou três que parecem mais. Vem à tona e volta a mergulhar. Não encontra nada apesar de quase poder jurar que estava ali algo brilhante. Decide sair. Dá vigorosas braçadas rumo à borda mais perto, braçadas que o fazem relembrar os seus tempos de sonhador quando ambicionava ser olímpico ou campeão reconhecido no mundo todo. Era puto, podia sonhar o que quisesse que nada lhe haveria de fazer mal. A realidade, porém, não fez dele um valor para a estirpe que perseguia…
Preparava-se para sair quando à sua frente um estranho vulto, uma silhueta de mulher com longos cabelos caídos sobre as costas e um véu solto cobrindo-a dos ombros aos pés se aproximava. Sem conseguir articular qualquer palavra limitou-se a olhar aquela mulher de porte leve e pele clara que lentamente desce os degraus da piscina, com véu e tudo, na sua direcção. Não consegue esboçar qualquer reacção e deixa-se enlear num beijo, um longo e pronunciado beijo que o afunda para dentro de água. Sente como se o tempo parasse, como se não fosse necessário voltar à superfície para nova golfada de ar fresco. Sem saber como vê-se atirado contra a parede da piscina, preso por um nó de pernas à altura da cintura. Um turbilhão de sensações atravessam-lhe o corpo e um furacão de emoções esmaga-lhe a mente. Sente-se perder o controlo, como se alguma vez o tivesse tido, sente na pele o suave toque de outra pele, macia e fresca que liberta um forte odor a magnólias. Quer abrir os olhos mas não consegue. Nem precisa… sabe que nesse instante lhe passam as mãos pelo peito, vão até mais atrás e lhe cravam as unhas nas costas. Um frémito de prazer solta-se-lhe pela boca e uma sucessão de gemidos abafados pelo ondular da água ecoa na imensidão do vazio serrano daquela hora. Sente que aquele instante lhe basta.
Na manhã seguinte um véu rendado, completamente encharcado e enrodilhado repousa junto às escadas que levam ao tanque de luxo. Ouve-se um grito de pânico que trespassa as copas das árvores e assusta os pardais. Dona Maria, a mulher do caseiro, descobre Óscar morto e afundado.