segunda-feira, setembro 13, 2004

book on progress...

Da janela do autocarro os olhos despedem-se da imagem da cidade e das torres da catedral a sobressair do casario do casco histórico. Compostela fica para trás e aos poucos, à medida que a camioneta avança rumo a Portugal não posso deixar de cair em mim e pensar que em breve voltarei ao dia a dia normal, tão diferente dos hábitos e rotinas adquiridas nesta viagem. Deixarei de acordar com a alvorada para caminhar, de buscar um albergue para pernoitar e descansar. Deixarei de comer aquelas benditas saladas de atúm e os substanciais menús de peregrino ou de fazer a lida diária, da lavagem das peúgas ao esfregar das camisetas, coisas tão banais na Via Láctea mas que perdem significado e pertinência no quotidiano habitual.
Por detrás de mim uma passageira grita para o motorista levantar o som do rádio. Queixa-se que não ouve a música e que assim a viagem será insuportável. Tê-la ali a gritar aos ouvidos desperta-me dos meus pensamentos e só me apetece mandá-la calar, de preferência com os mesmos modos bruscos e mal educados. Contudo deixo-me estar, regresso de uma experiência rica e preciosa demais para me deixar embarcar em discussões. Dizer-lhe que se continua a berrar, com toda a certeza nãoirá ouvir rádio alguma não lhe iria parecer argumento bastante e por isso fecho os olhos e deixo-me ir, revivendo os momentos que a cada minuto vão ficando mais distantes.
Vou sozinho com destino a Lisboa, tal como sozinhos partiram os restantes membros do grupo, rumo aos mais diferentes destinos: o Hugo para o pé dos pais em Vila Praia de Âncora, o Hélder para Foz Côa e quanto ao Rui, da última vez que deu notícias estava no Meco a apanhar sol.
Confesso que não esperava que a separação acontecesse em Santiago, tinha imaginado que nos iríamos despedir com um até breve e entre fortes abraços, no mesmo cais da Gare do Oriente que nos viu partir um mês antes. Porém, contra todas as minhas expectativas, foi ali mesmo na cidade meta que cada um destes companheiros e amigos deu o seu abraço e proferiu o seu "até um destes dias". Excepto o Rui que nos largou em Azofra respondendo a um apelo inadiável da sua consciência e a uma necessidade interior de avançar a solo.
Quando entrei no autocarro sentia-me triste com aquela separação e enquanto acenava para Ángel e Marina, os amigos catalães que nos acompanharam nos últimos 400 Km, pensava em como era estranho serem aquelas duas pessoas as últimas caras conhecidas que via antes de ir para casa. Mas o destino tem destas coisas e não vale a pena questionar os seus desígnios. Que graça teria esta vida se tudo acontecesse tal qual se está à espera, sem reviravoltas, sem surpresas, sem imprevistos? Esse é o tutano da vida, o mesmíssimo que John Keating, o professor do "Clube dos Poetas Mortos" nos estimulava a sugar e aproveitar...
Talvez por reflectir em torno destas coisas a tristeza se tenha dissipado rapidamente. Compreendi, até pela necessidade pessoal de digerir todas as emoções e sensações, que tanto o Hélder como o Hugo deviam sentir o mesmo e decerto precisavam de algum espaço e distância. Não muita pois as amizades que o caminho testemunha necessitam de alimento, de serem acarinhadas e preservadas pelo contacto frequente. As outras, já se sabe que também mas estas, depois de ultrapassadas tantas dificuldades em conjunto, quase soam a desperdício se não forem defendidas.
Quando entrei no combóio de ida não tinha presente nada do que veio a acontecer. Do Caminho de Santiago conhecia alguma história e lendas a ele associadas, tudo através de pesquisas na internet. Li coisas sobre as distâncias e as localidades que atravessa, sobre os cuidados a ter e a preparação a fazer mas nada disso previne para o que é o caminho. para o conhecer realmente e para o conseguir compreender só há uma forma: calçar as botas e caminhar, basta seguir as setas amarelas.