sexta-feira, novembro 05, 2004

Quinta do Véu Branco

Costuma dizer-se à boca cheia que Sintra encerra a magia do sobrenatural, que é terra habitada por fantasmas e espíritos, alguns bons, outros nem tanto, que habitam os solares, os palácios e casas construídas pelas encostas.
Cada propriedade tem os seus próprios mitos, as suas próprias histórias que vão passando de boca em boca pela voz dos seus donos ou das pessoas que lá trabalham. Faz parte da sua mística e atracção a existência destas lendas, quantas vezes corroboradas por factos insólitos que sucedem inexplicavelmente à vista de alguma gente. Por vezes há uns senhores cientistas ou pessoas menos crédulas que arranjam explicações perfeitamente racionais e científicas mas não chegam para afastar a crença de que há para aqueles lados uma força e energia diferentes.
Óscar, desde sempre se sentiu fascinado e atraído por este folclore, alimentando a secreta ambição de um dia vir a ser ele a avistar uma alma penada ou a dar de caras com um fantasma. Sempre que podia, passava temporadas na casa de campo de um amigo de infância, situada bem no sopé desse monte que chamaram da Lua, casa grande omnipresentemente vigiada pelos cumes sintrenses.
A janela do quarto que ocupava na velha mansão abraçava o verde da serra e dela se podiam ver alguns dos velhos palácios que lhe dão fama e lhe granjearam o reconhecimento da Unesco. Não se cansava de ficar sentado numa espreguiçadeira, junto à piscina e de onde podia abarcar a totalidade do cenário.
O seu amigo possuía diversas propriedades por esse país fora e raramente se dignava a aparecer na Quinta do Véu Branco. Preferia o bulício urbano à calmaria da montanha, a proximidade das diversões da capital ao silêncio das noites de Sintra. Só muito ocasionalmente abandonava a sua vivenda na Lapa para se passear nas restantes propriedades e na maior parte dessas ocasiões lograva rumar para sul, para Vilamoura e outros Algarves. Óscar tinha dessa forma luz verde para ocupar a Quinta do Véu Branco durante o tempo que quisesse. Era um acordo de que beneficiavam os dois – Óscar tinha o seu refúgio predilecto à disposição e Fernando dormia descansado sabendo que o seu recanto bucólico estava em maior segurança de vândalos e ladrões.
Quinta do Véu Branco… a origem do nome perdia-se na imensidão dos tempos, sem que houvesse quem soubesse explicar tão estranho baptismo. Fernando ouvia os seus avós comentarem qualquer coisa sobre uma história de mouras encantadas que outrora morariam por ali mas nunca aprofundou a questão. Outras teses apontavam para uma donzela que na medieval era se tinha enamorado por um pagem e que se tinha suicidado quando este morreu na guerra para defender o seu amo. Apesar de todas as especulações o nome continuava um. Um painel de azulejos aposto como decoração numa fonte aninhada num cantinho obscuro da Quinta testemunhava a antiguidade do nome: datado de 1789 representava o edifício original e um estranho véu esvoaçando à altura da varanda principal da casa. Em baixo, uma inscrição arcaica declarava serem aqueles os domínios do Véu Branco. Era um mistério e apesar da propriedade ser pertença da família há várias gerações aparentemente não suscitava curiosidade suficiente para suscitar uma investigação mais aprofundada.
Meados de Agosto e Óscar lia um livro junto à piscina num final de tarde quente. O ambiente abafado e o silêncio reinante, aliados a um substancial petisco momentos antes, tiveram como consequência o cair num sono profundo.
É cerca de meia noite quando, estremunhado e alarmado pelo bater de asas de uma coruja, Óscar abre os olhos e pode admirar o espectáculo que a ténue luz da Lua proporciona naquele pedaço do jardim onde a piscina se aninha. A água adquire reflexos dourados, como se um manto de discreta claridade descesse sobre a noite, amenizando a escuridão. De repente nota num objecto brilhante no fundo da piscina, um objecto que o atrai e lhe desperta a curiosidade. Continua calor, um estranho calor que a ausência de vento ou brisa faz parecer abrasador. Estimulado pela sua curiosidade e sem medo de se resfriar atira-se às águas produzindo uma enorme onda. Mergulha e por lá fica alguns minutos, dois ou três que parecem mais. Vem à tona e volta a mergulhar. Não encontra nada apesar de quase poder jurar que estava ali algo brilhante. Decide sair. Dá vigorosas braçadas rumo à borda mais perto, braçadas que o fazem relembrar os seus tempos de sonhador quando ambicionava ser olímpico ou campeão reconhecido no mundo todo. Era puto, podia sonhar o que quisesse que nada lhe haveria de fazer mal. A realidade, porém, não fez dele um valor para a estirpe que perseguia…
Preparava-se para sair quando à sua frente um estranho vulto, uma silhueta de mulher com longos cabelos caídos sobre as costas e um véu solto cobrindo-a dos ombros aos pés se aproximava. Sem conseguir articular qualquer palavra limitou-se a olhar aquela mulher de porte leve e pele clara que lentamente desce os degraus da piscina, com véu e tudo, na sua direcção. Não consegue esboçar qualquer reacção e deixa-se enlear num beijo, um longo e pronunciado beijo que o afunda para dentro de água. Sente como se o tempo parasse, como se não fosse necessário voltar à superfície para nova golfada de ar fresco. Sem saber como vê-se atirado contra a parede da piscina, preso por um nó de pernas à altura da cintura. Um turbilhão de sensações atravessam-lhe o corpo e um furacão de emoções esmaga-lhe a mente. Sente-se perder o controlo, como se alguma vez o tivesse tido, sente na pele o suave toque de outra pele, macia e fresca que liberta um forte odor a magnólias. Quer abrir os olhos mas não consegue. Nem precisa… sabe que nesse instante lhe passam as mãos pelo peito, vão até mais atrás e lhe cravam as unhas nas costas. Um frémito de prazer solta-se-lhe pela boca e uma sucessão de gemidos abafados pelo ondular da água ecoa na imensidão do vazio serrano daquela hora. Sente que aquele instante lhe basta.
Na manhã seguinte um véu rendado, completamente encharcado e enrodilhado repousa junto às escadas que levam ao tanque de luxo. Ouve-se um grito de pânico que trespassa as copas das árvores e assusta os pardais. Dona Maria, a mulher do caseiro, descobre Óscar morto e afundado.