segunda-feira, outubro 25, 2004

book on progress... Capítulo 2

Se fôssemos gente supersticiosa teríamos visto, logo no primeiro dia, vários sinais a indicar mau agoiro. Logo na Gare do Oriente, a apenas alguns minutos da partida faltava o Hugo com os bilhetes. Bem se lhe tentou ligar para o telemóvel mas só nos respondia a menina da Tmn indicando o número desligado. sem outra opção o remédio foi esperar, impacientemente, mas esperar. E quando já o formigueiro se tornava insuportável e quase se conseguia ver a automotora a vir de santa Apolónia, eis que chega o jovem, de mãos nos bolsos, com a descontracção de quem sabe que o combóio não parte sem ele.
Foi por uma unha negra.
Tempo para despedidas rápidas e mais ou menos chorosas, daquelas que é costume nas estações ferroviárias. Mochilas atiradas para o compartimento de 2ª classe e cabeças enfiadas para fora da janela, esboçando adeuses e até breves. Para trás ia ficando Lisboa, o rio Tejo e as construções futuristas da Expo. Para a frente, Hendaye, na fronteira hispano-gaulesa.
Estávamos muito longe de imaginar que daí a algumas horas estaríamos parados, algures entre o Entroncamento e Pombal. por causa de uma avaria.
Depois de uma paragem "técnica" na cidade dos fenómenos, percorremos alguns quilómetros para parar, no meio de nada, numa zona de obras com uma só via, entre taludes de terra recém construídos. Os passageiros foram saíndo, ocupando as bermas da linha e deixando os seus compartimentos para apanhar algum ar fresco. Foi interessante constatar tantos jovens, grupos de amigos, uns a caminho de férias, outros regressando a casa. Uns dando toques na bola, outros jogando às cartas sentados nas traves dos carris, outros ainda, formando círculos e conversando animadamente, como nós.
O ar abafado do anoitecer, pegajoso e húmido agarrava-se à pele. Deste tempo diz-se de trovoada mas a julgar pela ausência de nuvens não penso que fosse. No céu tons laranja fosco e rosas fortes marcavam o final do dia e auguravam um dia seguinte com quenturas de Verão. Fora das carruagens e a caminhar para a impaciência, os jovens e menos jovens limitavam-se a apreciar o final de tarde e a questionar os funcionários da CP, sempre que estes passavam, sobre a resolução do problema. Finalmente chegou a automotora para empurrar a compiosição até Pombal, entre gritos de "aleluia" e "até qu'enfim". De tudo o que podia correr mal, foi a força motriz daquele conjunto dfe carruagens a dar parte de fraca e a desistir de nos puxar até França.
Sem relógio, não sei quanto tempo perdemos mas não é preciso ser génio para perceber que foi muito mais que o admíssivel. Como disse, se fôssemos gente supersticiosa teríamos visto no ocorrido a acção de alguma força oculta divertindo-se a jogar connosco. Felizmente o nosso estado de espírito, a nossa vontade e entusiasmo estavam para durar e aquele contratempo não passou disso mesmo, um mero e inconveniente atraso.
Em Pombal substituiram a automotora avariada e devolveram a normalidade à viagem. Quanto a nós, aos poucos vencemos a timidez e palavra puxa palavra fomos conhecendo outros passageiros: um rapaz que já fez o caminho 25 vezes, partindo de sítios diferentes; um californiano em demanda pela Europa, rumo aos países de Leste; a sandrine, luso descendente de Paris rumo à terra dos pais perto de Vilar Formoso... Gente com histórias dentro e percursos diversos e aleatórios. Em comum o facto do destino, ou a coincidência os ter guiado a todos até aquele dia, aquela hora à mesma carruagem do Sud Express. Num ápice aquela viagem transformou-se num cruzamento de vidas e existências, um nó a unir destinos diferentes e a acrescentar algo a cada um deles e a cada um de nós. Provavelmente nunca mais teremos oportunidade de nos encontrarmos, de nos cruzarmos mas aquela troca breve de palavras e conversas de ocasião tornou o mundo mais rico e melhor preenchido. Apesar de breve, apesar das diferenças. apesar de não nos conhecermos, houve disponibilidade para ouvir e partilhar histórias. se ao menos o humanidade se desdobrasse em momentos destes...